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Artigo

 A Crise do Humanismo

Loeci Maria Pagano Galli
Psicóloga – Gestalt-terapeuta
CRP – 07/00404

Em um discurso contemporâneo, o sentido das palavras humano e humanismo não é absolutamente claro. O que ainda quer dizer humano? Haverá tempo hoje para se pensar na profundidade no termo humano ou em seu sentido no ritmo do que entendemos atualmente por “progresso da realidade”.

 

É exatamente a urgência de pensar em tal sentido que legitima o repensar a possibilidade de tal pensar. O que oportuniza esse pensar são as relações humanas, as pessoas que se relacionam com pessoas o tempo inteiro.]


O termo latino humanista surgiu na Itália, no século XV, para designar um estudante de grego, d latim e de culturas. No século XX, o título humanismo foi adotado por aqueles que rejeitavam qualquer crença religiosa transcendente e recomendavam uma preocupação exclusiva com o bem-estar humano na vida mundana, a única vida disponível. O humanismo se constituiu, durante o século XX, na arte de domesticar o ser humano para que ele fosse menos selvagem e não conseguiu. Logo, o humanismo passou a ser considerado obsoleto.

 

Para Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), o século XX distingue-se por uma associação inteiramente nova do “materialismo” e do “espiritualismo”, do pessimismo e do otimismo, superou asantíteses. A natureza humana tinha por atributos a verdade e a justiça, a época estava repleta de absolutos,de noções separadas. Tinha-se, de um lado, os valores e, do outro, as realidades, tinha-se o espírito e o corpo, tinha-se o interior eo exterior.

 

As retóricas do “humanismo” são perigosas. Em seu nome, já se cometeram inúmeras injustiças, já se dizimaram civilizações. O mundo institucionalmente rígido e autoexplicativo corresponde às ideias de essência que o sustentavam ideologicamente no século XX. A modernidade entrou em crise definitiva, e o que vivemos neste século é exatamente a vivência dessa crise. Estamos em um momento complexo no
trato humano. Um homem não pode receber uma herança de ideias sem transformá-la pelo fato mesmo de tomar conhecimento dela, sem lhe injetar sua maneira de ser peculiar e sempre diferente.


Muitos dentre nós que hoje retomam a palavra humanismo já não sustentam o humanismo sem ter vergonha de nossos predecessores. A característica de nosso tempo talvez seja dissociar do humanismo a ideia de uma humanidade de pleno direito e não só conciliar, mas também ter por inseparáveis a consciência dos valores humanos e aquela das infraestruturas que os sustentam na existência.

 

O humano em Merleau-Ponty não é fruto da investigação invasiva dos “humanismos” do passado, mas uma relação sensível, inteiro sensibilidade, inteiro reflexão, unidade complexa, relação consigo e com o outro, existência em processo de descoberta, sentido em construção.


Vivemos um tempo de desagregação das certezas. O tempo do sonho otimista moderno é passado, o tempo que vivemos é o da descoberta da temporalidade. Procuramos uma compreensão e o redirecionamento do tempo em que vivemos. Somos a tentativa de entender o próprio tempo e não queremos viver com promessas, com ecos do passado, a modernidade não estava à altura de suas promessas ou de um futuro que talvez não se alcance, mas compreender a realidade de poder entre os seres humanos e entre os seres humanos e sua natureza.

 

O que o ser humano está sendo e será depende das ações do próprio humano. Uma linha muito tênue separa o que torna o homem “humano” daquilo que o desumaniza. O pensamento humanista tem um compromisso com a reflexão e com a crítica da experiência histórica. Sua razão de ser está ancorada nos valores da dignidade, da liberdade e da igualdade de todos os seres humanos.


Vivemos em uma ética do pertencimento, com valores desenvolvidos pela cultura do individualismo e da competitividade. O humanismo deixou de existir depois que o “humanizamos” através da aprendizagem que desenvolveu uma dessensibilização para o respeito ao outro e para o encontro da solidariedade. O respeito ao outro como um igual é um ato de afirmação do ser e da minha própria natureza. O que ocorreu no desenvolver da humanidade para que predominasse a constante antropológica da competição, na qual se estabeleceu como valor a busca do lucro e da riqueza? Há, hoje, hegemonia da técnica sobre a moral, o homem não sobrevive se não tiver habilidade competitiva.

 

Estamos na era da pós-humanidade (cyber homens), o corpo humano se tornou obsoleto pelas necessidades de adaptações requeridas pelo ambiente, o perigo é não ter a consciência dos limites de tudo isso. A dúvida é onde termina o homem e começa a técnica, até onde estamos sendo verdadeiramente humanos e autônomos ou autômatos.

A técnica aparece como causa de um processo de desumanização. Heidegger (1997) se perguntou se o desenvolvimento tecnológico não se encontra enredado em uma escala compulsiva, em uma espiral infinita que, ao invés de resolver nossos impasses, nos impele cada vez mais para a beira da catástrofe. Se falarmos em ecologia, por exemplo, nos colocamos em risco diante da impossibilidade de uma autêntica vida humana na terra.

 

A liberdade em relação às ilusões de onipotência em que estamos enredados só pode ser alcançada com a capacidade de prever as consequências de ações possibilitadas por nosso questionamento sobre o saber-poder. Exercer a capacidade de renunciar ao uso compulsivo do poder tecnológico e ter abertura para dimensões de responsabilidades que não ultrapassem o âmbito das relações inter-humanas seria um movimento de resgate da solidariedade.


A técnica dispõe os entes como objetos em um processo de transformação, consumo, desgaste. Ela requisita o ente no sentido de desafio. O processo tecnológico subverte a lógica da ética humanista.

 

Precisamos descobrir um mundo onde não predominam relações como objetos. Uma afirmação da vida e do ser, onde educar representa o despertar da solidariedade, educar no sentido amplo. O gesto fundamental é ir ao encontro, reconhecer-se nas relações possibilitadas por múltiplas afirmações do ser, seja de mestre e aluno, seja de terapeuta e paciente, é buscar relações nas quais se reconheça o outro como legítimo outro, que não eu, é onde se pode exercer a liberdade.


Um homem de progresso é um homem que caminha, que vai ver, que experimenta, modifica sua prática, verifica seu saber e assim infinitamente. É preciso escolher entre fazer uma sociedade desigual com homens iguais ou uma sociedade igual com homens desiguais. Quem tem só um pouco de gosto pela igualdade não deveria hesitar: os indivíduos são seres reais e a sociedade, uma ficção.

 

O ser humano hoje reflete uma cultura de para-raios da sua própria cultura e para isso precisa criar couraças, proteções. Países buscam reservas de outros, todos querem receber mais do que dar, a honestidade é mal compreendida, as massas representam energias do medo e estão sempre competindo. O ser é transformado em ser global e hoje, diante de tantos globais, não sabemos onde está nossa consciência. As pessoas estão expostas a estímulos, a imagens, e achamos que temos de responder sempre.


A sociedade hiperindustrial priva os seres humanos de sua individualidade. A criação de necessidades e desejos, a criação do desgosto por tudo que é antigo estabelece--se como ultrapassada. Há um controle dos comportamentos individuais, transformados em comportamentos de massa – embora o espectador, isolado diante de sua TV, conserve a ilusão de que sua escolha seja singular, há um fundo pré- individual comum a todas as singularidades. Se ouço várias vezes a mesma melodia, minha consciência do objeto muda. A estética na era hiper industrial é transformada pelo poder econômico, substituindo a experiência sensível dos indivíduos. A mídia pode ser entendida como produtora de sentidos.


Uma opinião não é uma verdade, o erro seria tomar as nossas opiniões e as dos outros como verdades. Podemos pensar que nossas opiniões são apenas opiniões e nada mais. Pensar por nossa conta e risco nos conduz ao exercício da responsabilidade pessoal e intransferível no plano de nossos pensamentos e opiniões. Acreditar em verdades absolutas e fórmulas de convivência não existe. Cada um traz consigo influências familiares que interferem nas escolhas. Acreditar em um ideal é fruto de uma racionalização consagrada, coletiva e cultural.


A melhor vida não é focada em fantasias, esperas, previsões que nos impedem de entrar em contato com a vida possível que estamos podendo trilhar – boa, razoável, não tão sofrida, regulada pelo autoconhecimento e com escolhas possíveis. Humanizar a natureza e naturalizar as relações humanas em
sociedade é um dos nossos compromissos. Ao assimilarmos os processos naturais comparados aos artefatos construídos, provavelmente não teríamos perdido o sentido tradicional da natureza, já que o natural sempre foi compreendido como o que cresce por si mesmo.


A dignidade humana não se deve à sua condição de sujeito, essa dignidade consiste em ser jogado na clareira do ser (a temporalidade é originária do ser). Esse tempo do ser assume a forma do acontecer (série de acontecimentos), registros cronológicos da série de acontecimentos ordenados pelas suas circunstâncias, condições, causas e consequências de ordens variadas (econômicas, políticas, sociais, culturais, etc.) determinam o sentido de uma era do mundo que ocorreu e tem importância para os homens; é nela que o ser se dá e se mostra no horizonte da história e confere um sentido para o modo
como os entes em sua totalidade existem no mundo.


Hermenêutica[1] é o exame de condições em que ocorre a compreensão, é uma analítica da condição existencial, dimensão compreensiva como constitui o ontológico do ser-o-aí[2]. Toda a compreensão possível do ser, a partir do Dasein[3] , é uma compreensão temporal de um passado histórico que o precede como membro de uma família, de uma sociedade. Isso condiciona em grande medida seu presente, a partir do qual se abrem possibilidades futuras, às quais ele também pode permanecer alheio, alienado nas malhas do impessoal, como inautenticidade[4].

O ser-o-aí aberto a possibilidades indeterminadas do ser pode assumir-se inclusive como um ser para a morte, existir no modo de autenticidade[5] . Heidegger pensa a essência do homem como abertura para o ser, como obediência ao apelo do ser. A ética Heideggeriana da finitude confere significação própria ao mundo e aos entes intramundanos cuja cura compete ao homem – não como mestre dos entes, mas como pastor do ser. Assim Heidegger nos propõe a sorge[6] (cura ou preocupação), cuidado com alguma coisa, cuidado com algo ou alguém, ser no mundo é existir como cura, seja no trato com objetos, pré-ocupação, como ser-o-aí-no-mundo, ao modo de existir.


A relação de Hermes (origem mitológica da hermenêutica) com o mundo dos homens é a de um mundo por definição aberto, é aquilo que não se pode prever nem reter, é o inesperado. A facticidade[7] -da vida é a base de todo conhecimento, é o conhecer por familiaridade, não é ideal nem realista, o conhecimento se faz por semelhança.

 

A percepção humana não é animal porque tem um plano de fundo, já nasce viciada. Nunca haverá uma síntese entre mente, percepção, cérebro, pois elas andam paralelas infinitamente. A percepção não é um conceito da física, nem da neurofisiologia, não se extrai por mais requintado que sejam os instrumentos que expliquem os conteúdos das minhas representações mentais. Algo já se move quando eu decido. O cérebro ainda me dá a satisfação de pensar que eu escolhi. Ele já existe significando o mundo.

 

O mundo que dá segurança ao homem é uma espécie de moldura e o ser humano sabe que esse mundo não existiria sem ele e ao mesmo tempo esse mundo o sustenta.


As interpretações que Heidegger realiza de certos aspectos que as ciências humanas apresentam e de temas dos intérpretes da cultura dirigem-se ao que se pode entender como consequência do esquecimento do ser, são questões que a humanidade enfrenta desde a primeira metade do século XX.

 

Toda percepção, enquanto percepção humana, é tonalizada por um modo de existir, que, ao mesmo tempo em que possibilita ser no mundo, é atravessada por uma base de pensamento que é o cuidar de si mesmo enquanto perceber, passando pelo mundo ambiente nos leva a uma dimensão existencial em que o perceber remete à dimensão hermenêutica. Perceber no ser humano não pode ser esperado da significatividade. Na percepção eu já me compreendo, já há o cuidado aqui.

 

O ser humano, quando se compreende como ser, já se interpretou, na medida em que sua compreensão implica a compreensão de ser. Essa circularidade é o que envolve sempre a dimensão pré-histórica de uma arqui-ciência que precede qualquer conhecimento. Se a circularidade constitui a essência de toda a fenomenologia hermenêutica, ela não está acima da história, ela terá que retornar à história, a fim de se apropriar verdadeiramente dos fenômenos. A fenomenologia hermenêutica descobriu que ser no sentido de compreender, a doação mesma dos fenômenos, é um artifício. O homem não existe de maneira natural, ele sempre existe significando o mundo.

A ação do homem no seu ser-no-mundo é desdobrada pela possibilidade originária de ser-com-os- outros, é jamais individual. Ocupar um lugar no mundo é ocupar um lugar na vida do outro. No sentido ôntico[8] podemos ser despreocupados, descuidados, mas no sentido ontológico[9] todos cuidam, o contato é simultâneo do meu próprio ser com o ser-no-mundo. O ser que é o homem não se compreende a si mesmo sem a compreensão do ser, compreendendo o ser, compreende a si mesmo.

 

Somos a própria temporalidade que nos constitui, uma temporalidade que flui, que corre e que acumula em si o seu passado. Somos revelados a nós mesmos quando encontramos o nosso próprio tempo.

 

Vivemos agora um tempo de desagregação das certezas, um tempo crítico no sentido mais etimológico do termo, que remonta pelo menos ao início do século XIX. O tempo que vivemos é o tempo da descoberta da temporalidade. Não somos uma tentativa de entender o próprio tempo? Não queremos viver esse tempo como se fosse propriamente o nosso tempo e não como ecos de um passado infinitamente distante ou de um futuro que talvez não se alcance?

 

Hannah Arendt (1906-1975)
A condição humana, segundo Hannah Arendt, compreende algo mais do que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com que eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vida ativa consiste nas coisas produzidas pelas atividades humanas, as coisas devem sua existência exclusivamente aos homens. A condição humana é uma ação integrada dos seres humanos entre si, na construção da história. Aventura estranha, desconfortável, arriscada. Onde está a referência? Certamente, não na ideia do que irá passar, pois não há temor nem do que se passou, a memória não substitui o viver, é um viver de outro modo, nem do presente, que não é mais (felizmente), quando penso que o apreendi, ele se foi. Os fantasmas da essência indeterminável povoam clandestinamente o mundo da consciência, não há exorcismo que os neutralize, apenas se dão na vida. Desconectam a vida de sua lógica.


Michel Foucault (1926- 1984)
Para Foucault, uma escola não é diferente de uma prisão. A manutenção hierárquica é tão importante para as instituições de ensino como para as fábricas e as prisões. As estruturas hierárquicas, os mecanismos de controle “invisíveis” são, na verdade, tão sólidos como as paredes das instituições.

Autonomia de sistemas anti-humanos, de automatismo, um verdadeiro “maquinismo” que reduz o humano a uma peça de produção a ser objetivada. O humano para Foucault é um ser capaz de criar redes anônimas de poder, de gerar estruturas de desumanização, de “maquinizar-se” social e historicamente, de hipotecar sua dignidade e humanidade a “mecanismos” impessoais.


Hans Georg Gadamer (1900-2002)
Para Gadamer, é importante dar-se conta de que na consciência de saber precisa ficar claro o quanto fica de não-dito quando se diz algo. O ser humano que se arvora de ser pensante por natureza deve aprender a reorientar suas estruturas cognitivas para evitar a hipertrofia de seus modelos de representação intelectual, que vem se substituir à natureza. A hermenêutica, como tantas filosofias contemporâneas, é uma crítica aguda e extremamente vigorosa às filosofias e suas seduções. Aprender a viver significa, hoje, aprender a conviver. Essa não é uma ideia filosófica, entre muitas outras, de valor semelhante, mas um imperativo da vida enquanto sobrevivência. As grandes questões ecológicas da atualidade são extremamente eloquentes no que diz respeito a isso. Trata-se de aprender, finalmente, a tratar a natureza e a realidade como um todo, não desde o ponto de vista da objetivação reificante[10], mas desde uma perspectiva estética de base.
Reconhecendo todas as formas de vida humana e as articulações de cada uma de suas respectivas imagens de mundo, estamos no domínio da hermenêutica. É assim que Gadamer chama a arte do compreender. Compreender não é, em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se compreende. Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que diz e com o que propriamente quer dizer. Compreender não é, portanto, uma dominação do que está à nossa frente, do outro e, em geral, do mundo objetivo. Pode também ser compreender, que se compreenda para dominar. Assim, é natural a vontade de dominação do homem  sobre a natureza, o que, de fato, torna possível a nossa sobrevivência.
Aceitar o outro com suas razões é não querer integrá-lo à força em um modelo prévio de inteligibilidade que apenas convém ao nosso modelo de racionalidade e às nossas razões privadas.
Compreender é abrir-se ao mundo. É fácil compreender que se considere desesperadora a situação da humanidade. A solidariedade é o pressuposto básico sobre o qual podemos desenvolver, ainda que só lentamente, convicções comuns?
A cultura da ciência e sua aplicação técnica e organizatória de desenvolvimento não terá também desenvolvido a capacidade de estar em poder de armas mortais e de saber o que nossa cultura carrega de responsabilidade para a humanidade em um todo? O humano é um ser capaz de perceber que tanto ele quanto a história e o mundo transcendem totalmente sua capacidade de objetivação e de representação e que, portanto, tem de se abrir a renovadas dimensões do compreender. Retornar da abstração ao concreto, da ideia de vida à vida, para com o outro, é sermos capazes não só de sonhar, como realizar coletivamente um mundo mais humano.


Martin Heidegger (1889-1976)
Para Heidegger, humanismo é curar e cuidar que o homem seja humano e não inumano, isto é, estranho à sua essência. A humanidade do homem repousa em sua essência. O ser se apegou ao destino histórico, à sua essência. Apegar-se a uma “coisa” ou a uma “pessoa” em sua essência quer dizer: amá-la, querê-la. Pensando de um modo mais originário, significa essencializar, dar essência.
Todo o humanismo que se assenta sobre uma determinada figuração do ser – uma concepção do ente – como se fosse o próprio ser, está viciado pela dispersão metafísica da realidade originária. Todo o humanismo que é metafísico é igualmente viciado em sua origem por instrumentalizar, ainda que involuntariamente, a verdade do ser, transformando-a em aspecto ou momento de uma lógica parcial, obcecada pela essência. O ser determinado pela metafísica continua a esperar que ele mesmo se torne,
para o homem, digno de ser pensado.
Toda determinação da essência do homem, que já pressupõe, em si mesma, uma interpretação do ente sem investigar – quer o saiba quer não – a questão sobre a verdade do ser, é metafísica. Todo o humanismo permanecerá sempre metafísico ao determinar a humanidade do homem. O humanismo não só não questiona a referência do ser à essência do homem como também impede tal questionamento, uma vez que, devido à sua proveniência da metafisica, nem o conhece, nem o entende. Os vícios essencialistas devem ser separados para que o humano reencontre sua origem.

 

Soren Kierkegaard (1813-1855)
Ser si mesmo é extremamente arriscado: significa colocar a cabeça para fora do mar da mediocridade. Significa correr riscos extremos e, no mínimo, suportar o desconforto da inadequação ao rebanho alienado que, aparentemente, sugere um grupo de autoconsciências, mas que, realmente, nada mais é do que o resultado da perda existencial. É a diferença entre ousar viver e fingir viver.

 

José Ortega y Gasset (1883-1955)
De acordo com Ortega y Gasset, humano é quem leva realmente a sério a vida, encarando-a não como um fardo ou um jogo do destino, mas como um desafio à humanidade. A humanidade constitui-se quando o humano a escolhe. A vontade feita ação, o arriscar-se no perigo, tudo isso nega a passividade
das convenções, das formalidades, das obviedades. Humano é quem, apesar de todos os perigos, não se inclina ao conforto da “semiexistência” programada pela sociedade, mas arrisca tudo – até a si mesmo –, para ser si mesmo.

 

Franz Rosenzweig (1886-1929)
A ideia de humano para Rosenzweig, um dos intelectuais centrais do século XX, propõe um ser humano capaz de requalificar radicalmente suas relações com a realidade, superando as limitações objetivantes de modelos cientificistas e impessoais.
Conhecer não é retirar as essências do tempo sob pretexto de preservá-las, mas acompanhar o tempo das essências – das realidades que existem enquanto existem, como existem. Sabe-se que não se pode conhecer nada com independência do tempo, assim como não se pode iniciar uma conversa pelo final. Temos de aprender a esperar até que chegue o que se espera, sem pular nenhum instante. Assim também o conhecimento em cada instante deve estar ligado precisamente a esse instante e não pode fazer do passado algo não passado, nem do futuro algo não futuro. Isso vale para as coisas diárias. O homem não pode deixar que o raio da experiência seja sempre só concebível como atual, nem que se petrifique convertendo-se em passado, nem pode esperá-lo tampouco do futuro, já que sempre e somente é presente.
Esperá-lo é o meio mais seguro de impedir o seu impacto. O humano em Rosenzweig é aquele capaz de achegar-se ao mundo no sentido da construção de um “encontro” com a realidade e não de sua explicação ou substituição por um sistema ou corpo conceitual; aquele que, levando a sério seu próprio tempo, sabe que o faz porque leva a sério o tempo real do outro, outro que ele mesmo, o outro tempo.
A multiplicidade, o pré-original da realidade em sua variedade infinita, não é substituída por uma unidade sintética, o espaço não substitui a temporalidade, mas é a temporalidade que configura os espaços dos encontros.

Ainda para Rosenzweig, humano é aquele que não tolera a injustiça contra a multiplicidade pré-original, é aquele capaz de tratar sua existência – a existência de todas as coisas – com o respeito que caracteriza todas as coisas como companheiras de aventura na construção do mundo mais concreto, mais ético, mais humano, e humano significa: concreto, próprio, eminente, pacífico. Humano é quem constrói eticamente a cultura da justiça e da paz.

 

Jacques Derrida (1930-2004)
Entre a vida e a morte, entre o que elas identificam e trazem, vive-se não fazendo outra coisa que aprendendo a conviver com a vida de outros. Aprender a viver por si só, por si mesmo. A vida não sabe viver de outro modo. Faz-se outra coisa, em tempo algum, senão aprender a viver? Estranho compromisso para quem não está vivo, supostamente vivo, uma vez que tal compromisso é, ao mesmo tempo, impossível e necessário. Entre vida e morte eis, na realidade, o lugar de uma injunção sentenciosa que sempre finge falar como o justo.
Mas a vida trata-se de uma aventura no desconhecido e o desconhecido, reino dos limites, nas fronteiras do tolerável, é a condição da vida.
Qualquer reflexão tem um elemento intuitivo. A experiência humana nunca é pura. O mundo que dá segurança ao humano é uma espécie de moldura e o ser humano sabe que esse mundo não existiria sem ele e ao mesmo tempo esse mundo o sustenta. Ele já existe significando o mundo. Na consciência de que o eu não é senão uma contínua criação, um perpétuo devir, uma permanente metamorfose, o homem se faz ao se desfazer, não será nunca de tal forma que não possa ser também de outra maneira. A novidade assusta, gera um desconforto, uma reorganização interna, mas é vida, do contrário, é uma morte travestida de vida. Quando compreendo algo, compreendo também que sobra muito mais do que eu compreendi, que ainda não compreendi. A cada lógica se pode opor uma ilógica que é uma outra lógica. A presença nunca é só presença, ela também é ausência do que não me aparece como presença. O paradoxo é que só vemos o que ficou sedimentado no tempo.
A desconstrução é mais um efeito de nossos tempos, a diferença de outros pensamentos é que ela assume essa fragilidade ao invés de pretender oferecer verdades ou pretender-se sólida ou certa.
A desconstrução não oferece e nem pode oferecer conclusões. Um pensamento em tempos fragmentados, em tempos dilacerados como o que vivemos não pode mais oferecer verdades, apenas mostrar a fragilidade e a desconstrução inerente às estruturas de nossos tempos, seja nas leis, nas relações pessoais, na política etc.
Qualquer alternativa, qualquer possibilidade de um novo começo dependerá do reconhecimento da determinação essencial do nosso presente, dependerá da confrontação e do perigo em que estamos envoltos, pois o extermínio tecnológico não poderá ser pensado como um simples retrocesso acidental à barbárie, já superado e resolvido de uma vez por todas.
A tecnologia moderna não se satisfaz simplesmente em trazer os entes à presença, mas os descobre enquanto matéria ou recursos que podem ser continuamente reutilizados, transformados, economizados e manipulados em um ciclo supostamente infinito no qual se instala a devastação da natureza.

 

Referências

● GIACOIA Jr, Oswaldo. Heidegger Urgente – introdução a um novo pensar. São Paulo: Ed. Três Estrelas, 2009.
● HEIDEGGER, Martin. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Ed. Vozes, 2012.
● HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Santiago do Chile: Universitária, 1997.
● HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. Porto: Porto Editora, 1995.
● INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

● POWELL, Jim; HUWELL, Van. Derrida Para Principiantes. Buenos Aires: Ed. Era Naciente, 2007.
● SOUZA, Ricardo Timm; OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Fenomenologia Hoje.
Existência, Ser e Sentido no Alvorecer do Século XXI. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
● SOUZA, Ricardo Timm. As fontes do Humanismo latino, vol. 2: a condição humana no pensamento filosófico contemporâneo. Porto Alegre: Ed. Edipucrs, 2004
● STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001.
● WALDMAN, R. Avances en neurotecnología y sus implicancias en la naturaleza y autonomía humana con posibles consecuencias éticas y jurídicas. 2015. 199 f. (tesis en Maestría en Bioética) - UMSA, Buenos Aires, Argentina. 2015.
● SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre humanismo. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2000.

[1] A expressão “hermenêutica” se deriva, diz Heidegger (1977), do verbo grego hermeneuein, que se liga ao substantivo hermeneús. O substantivo pode ser juntado, através de um jogo mental, que se impõe mais do que o rigor da ciência, com o nome do deus Hermes. Hermes mitologicamente é o mensageiro dos Deuses; cabe a ele trazer a mensagem do destino.
Hermeneusein é aquela exposição que comunica à medida que tem possibilidades de escutar uma mensagem. O hermenêutico não é primeiramente a explicação, mas, antes disto, é o já trazer uma mensagem e comunicação.
[2] O Ser-aí ou o Ser-aí-no-mundo é a tradução portuguesa do termo alemão Dasein, muito usado no contexto filosófico como sinônimo para existência.
[3] Dasein: a palavra Dasein significa, literalmente “ser el ahí”, e por conseguinte se refere ao ser humano aberto a si mesmo, ao mundo e aos outros demais seres humanos. A palavra Dasein significa literalmente existência, porém Heidegger a usa no sentido exclusivo da existência humana.
[4] Inautenticidade: está associada ao impessoal. Ele continua a falar de si mesmo como eu, mas referindo-se ao impessoal interpretado em função do mundo.
[5] Autenticidade: todo o Dasein é chamado a autenticidade para o cumprimento de si-mesmo, a propriedade do ser do Dasein com cuidado(cura). O Dasein não é nem autêntico e nem inautêntico encontrando-se num estado de indiferenz ele não está necessariamente sujeito ao impessoal. Dasein é autêntico se pertence à vontade do ser, mas na maior parte do tempo o homem é o des-vio.

[6] Sorge cura, cuidado, ocupação, preocupação – é o próprio ser que cuida na medida em que Dasein é um ser-um-com-o-outro. Tratar e cuidar de alguma coisa, produzir algo são modos de ocupação. A autenticidade possibilita ajudar os outros a firmarem-se sobre seus próprios pés ao invés de reduzi-lo à dependência. É cuidar de si.
[7] Facticidade é a característica de ser um facto. É o nome que filósofos como Heidegger e Sartre dão àquele aspecto da existência humana que é definido pelas situações em que nos encontramos, o “facto” que somos forçados a confrontar. Um modo de ser, como um mero objeto de investigação desinteressada, separado de qualquer interesse prático ou pessoal. Tem a ver com as condições contingentes que não dependem das nossas escolhas. A facticidade inclui todas aquelas minúcias factuais acerca das quais não se tem nenhum controle. É o caso da data do nosso nascimento, os nossos pais ou os limites do ser humano enquanto tal. Ou o caso de todos termos de morrer um dia. Para Heidegger e Sartre, a facticidade é muito importante, porque constitui a base necessária de todas as nossas ações. Apenas somos livres em situações. A nossa liberdade de ação, a nossa capacidade de transcender as nossas circunstâncias sempre foi contra um contexto de facticidade. Segundo Heidegger, é só na facticidade da sociedade, em termos de uma identidade e um sistema de valores, que nós próprios não escolhemos, queexercemos a “decisão” pessoal que define a nossa existência.
[8] Ôntico – ontologia estuda o ser dos entes.
[9] Ontológico – remete à pergunta pelo sentido do ser enquanto ser. O existencial ontológico remete ao plano do ser.
[10] Reificante, para Marshall Berman (1940-2013), filósofo americano de tendência marxista (livro mais vendido: Tudo que é sólido desmancha no ar), no cotidiano da vida urbana, sem cair nos vícios empobrecedores ou reificantes da existência, ensejados pelo capitalismo ou na crítica mais convencional.

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